'Magia' existe.

    Nos últimos dois meses minha mente, corpo e tempo livre foram consumidos por uma obra que residia dormente no fundo da minha mente por treze anos, mas que eu nunca tinha me dado a oportunidade de não só me jogar como também sentir sua experiência, e quando falamos sobre Umineko: When They Cry, não é sobre entender, não é sobre cânone, é sobre sentir e, ao seu fim, em um mundo contemporâneo onde a nuance e crença não valem tanto quanto a verdade e o cinismo, aprender novamente que magia 'existe' é especial, ou, redundantemente, mágico.

    Umineko, como irei chamar daqui para frente, é uma novela sonora, ou seja, seu grande foco está na dublagem, trilha sonora e texto, mas para nós, não falantes de japonês, ainda é uma experiência bastante visual, afinal, são mais de 200 horas de leitura, a depender do seu ritmo, somando mais 1 milhão de palavras ditas até sua conclusão, em termos técnicos, isso não importa muito, o que eu quero trazer é que, pela sua extensão e dedicação necessária para ir até os confins do seu enredo, demanda dedicação, e assim como essa dedicação é necessária para sua conclusão, eu estou dedicando uma área da minha mente somente para pensar em como fazerem as palavras em Umineko terem significado pelas minhas palavras, e no momento que estou desenvolvendo esta postagem, eu ainda não decidi o que farei, mas tenho uma ideia de por onde começar, pelo seu primeiro episódio.


    A Lenda da Bruxa Dourada, como se intitula este primeiro episódio, é em torno de apresentar todos os membros presentes na ilha de Rokkenjima, em 1986, sendo em sua maioria membros de uma riquíssima família sob o nome Ushiromiya, e os demais sendo os trabalhadores domésticos. Esse pessoal se encontra nesta ilha nesta data para a anual Conferência da Família, evento que reúne todos os filhos e os filhos dos filhos do patriarca da família, Kinzo, e assim como o nome diz, é de fato uma conferência, como um encontro de negócios, para discutir sobre as riquezas acumuladas da família, mesmo que, para as crianças e adolescentes da família, é só um momento divertido para encontrar seus primos, jogar conversa fora e aproveitar este curto tempo de estadia, já que fora desta data, eles raramente se encontram. 

    A tal ilha de Rokkenjima pertence à família, especialmente à Kinzo, o patriarca. Tudo nesta ilha fora construído sob o cuidadoso comando do mesmo, após recuperar a família Ushiromiya das cinzas, que após um terremoto, estava devastada financeiramente. A lenda diz que Kinzo, na sua juventude, encontrou a bruxa dourada Beatrice, que vivera mais de mil anos, e teria feito um contrato com Kinzo em troca de uma quantidade inestimável de ouro. Com esse ouro, Kinzo viria a restaurar a glória e riqueza da família Ushiromiya, que hoje conta com muitos filhos e netos, não tão bem sucedidos assim nos negócios, mas da alta classe independentemente. O que é digno de nota aqui, é que na mansão da família presente na ilha, à vista do hall de entrada, havia um enorme quadro, supostamente da tal bruxa dourada, e abaixo deste quadro havia um epitáfio, que redigia um enigma para encontrar a riqueza em ouro que estaria escondida até os dias presentes na história, enigma esse que denotava sacrifícios e palavras confusas, mas que, após alguns meses de ser colocado neste hall, se tornou apenas peça decorativa para os adultos e fonte criativa para os jovens, mesmo que, junto à este quadro enorme e a lenda deste ouro, os serviçais da residência contem diversas histórias sobre como a bruxa, que é dito morar escondida na floresta da ilha, seria a mestra da mansão durante a noite, pregando peças com os serviçais e punindo aqueles que desrespeitavam sua existência. 

    E é neste clima que Umineko se inicia, quando um ciclone isola a ilha do restante do mundo, cortando todas comunicações e também meios de transporte da ilha com o mundo exterior, dessa forma, arrancando a ilha do 'mundo material', tal como o famigerado gato de Schrödinger. É claro que o tal gato é um estudo que visa explicar, de forma provocativa e até mesmo contraintuitiva, o âmbito molecular quântico, mas o mesmo tem uma aplicação extensiva na ficção, sendo usado para explicar os diversos universos possíveis que uma decisão possa criar, e no caso de Rokkenjima, nós logo saberemos a conclusão que teve a ilha, mas o que levou esta conclusão à acontecer, estará trancafiado dentro da caixa de gato, fazendo da verdade então supérflua, se não temos acesso a única verdade, então todas as possibilidades são verdade, e também não são.

    Trazendo esta explicação, entende-se que Umineko quer brincar justamente com o que temos como ideia de cânone, afinal, se não sabemos o que aconteceu, como sabemos que aquilo é verdade? Ou melhor ainda, por que a verdade importa, no fim das contas? Uma das diversas brincadeiras quer fazer com seu leitor mora justamente nesta ideia, onde a verdade é a superposição da magia, onde os dois coexistem mas são resistência um ao outro. Mas para falar mais de magia, precisamos encerrar nosso primeiro episódio:

    Após a ilha ser desligada do mundo, Maria, a menina mais nova presente, uma menina no auge dos seus 9 anos que acredita fielmente ser uma bruxa e amiga de Beatrice, a bruxa da floresta, diz ter recebido uma carta da tal bruxa, e que ela seria a mensageira responsável por ler a mensagem, sendo ela:

 

"Bem-vindos a Rokkenjima, todos da família Ushiromiya. Eu estou servindo Kinzo-sama como a alquimista-consultora desta casa e meu nome é Beatrice. Eu o servi obedecendo a um contrato que durou muitos anos, mas, hoje, Kinzo-sama decretou o fim desse contrato.

Consequentemente, durante o dia de hoje, meu dever como alquimista-consultora da família chegará ao fim, então, por favor, entendam isso. Então, devo explicar uma parte do contrato a todos aqui. Eu, Beatrice, emprestei uma grande quantidade de ouro a Kinzo-sama, mas com uma certa condição.

Quanto a essa condição, ele deve me devolver todo o ouro ao final do contrato. E como um juro, posso aceitar tudo da família Ushiromiya. Ao ouvir isso, todos provavelmente lamentarão que Kinzo-sama está sendo muito implacável.

No entanto, Kinzo-sama, a fim de dar uma chance de deixar a riqueza e a fortuna para todos, adicionou uma cláusula especial. Somente quando essa cláusula for satisfeita, perderei eternamente meu direito de cobrar o ouro e os juros."

     A tal cláusula especial, neste caso, sendo a resolução do epitáfio. E é claro que todos os adultos da família levam isso como uma pegadinha, brincadeira de mal gosto de Maria, que adorava tudo que fosse sobre bruxas e magia, então mesmo com o inicial pânico, sumariamente todos ignoraram com deboche ao aviso. Mas assim como foi construído até aqui, há algo diferente sobre este aviso, e pela manhã do dia seguinte todos entenderiam que os juros cobrados pela suposta bruxa são mais do que os ativos da rica família, afinal, na manhã seguinte, seis pessoas, entre serviçais e membros da família, foram encontrados mortos dentro de um pequeno galpão com materiais de jardinagem, e a partir daqui, vivemos um mistério clássico de whodunit, no melhor estilo que foi feito famoso por Agatha Christie e S. S. Van Dine, sendo a inspiração mais clara o livro Não Sobrou Nenhum.

    Não irei entregar demais o que acontece, afinal, parte da graça do mistério é acompanhar estes casos e entender o que ocorreu e teorizar na forma, pois mesmo com o aviso da bruxa, em nenhum momento vemos magia de fato acontecer, todos os assassinatos, por mais violentos que sejam, ainda poderiam ser feitos por mãos humanas, e por isso, até o final deste episódio, temos personagens se voltando uns contra os outros ou até mesmo desconfiando de uma pessoa escondida na ilha, e com eles, isolados do mundo real, não é difícil sucumbir à paranoia. Porém, no seu final, Battler, que estava longe da família por seis anos, presencia uma cena inexplicável, a bruxa do quadro ganharia vida, Maria correria para seus braços, e então, todos os cinco sobreviventes sumariamente foram mortos pela bruxa... então Battler acordaria em uma sala de chá, com todos seus familiares vivos, e todos estão se divertindo, garantindo que foram revividos pela bruxa Beatrice, pois no fim das contas, a bruxa 'existe', magia 'existe', e pela primeira vez, Beatrice aparece, como personagem neste caso, afinal, sua presença residia durante todo o mistério como uma sombra engolindo a ilha dentro de si. Battler, em um ato de rebeldia, clama que 'magia' não existe, que bruxas não existem, e que a Beatrice não existe. Beatrice então, divertindo-se com a audácia de Battler, propõe um jogo, onde eles teriam que resolver um mistério na ilha de Rokkenjima, onde Beatrice mostraria que estes assassinatos seriam feitos através de magia, e Battler teria que provar que esses assassinatos poderiam ocorrer através de mãos humanas, e assim se encerra o primeiro episódio, construindo a premissa inicial, onde os acontecimentos de Rokkenjima seriam repetidos, mas como se fosse em uma realidade diferente, com as mesmas pessoas até este ponto, mas que seu decorrer seria completamente diferente, marcando assim um embate intelectual entre Battler, o humano, e Beatrice, a bruxa dourada das lendas.

    Tudo que escrevi até então não serve mais do que apenas uma introdução ao mistério que Umineko te oferece, e também a temática inicial do que ele quer te contar, abaixo irei construir em torno da temática de Umineko como um todo, que por mais que eu não vá contar trechos diretos da história, entender o que a obra deseja lhe contar também é o mesmo que comer um cookie antes de assar: alguns gostam do sabor, mas o cookie não foi pensado para ser consumido assim. 

    Daqui para frente Umineko decola e vai longe, explorando diversos temas e personagens, assuntos como trauma geracional, o conceito de amor e magia, identidade e gênero, machismo como ferramenta de opressão estrutural, o conceito de verdade e cânone, dentre outros, é explorado dentro da sua enorme extensão, nestes temas, a grande maioria deles reside principalmente nas suas personagens femininas. As mulheres de Umineko importam, não só importam como são a engrenagem que faz rodar este mundo, justamente os temas apresentados em paralelo com os sonhos e esperanças traçam personagens inteiros, falhos e contraditórios, por vezes mais humanos que nós humanos, ou na sua ironia, mágicos de sua própria forma.

    São muitos temas que eu claramente não conseguiria articular em um único texto, portanto, por ora, iremos nos ater ao título: e aí, magia 'existe'?

    Eu não sei! Me diga você!

     Vamos introduzir um personagem aqui, um mágico bastante famoso chamado Mister M. O mesmo irá lhe mostrar uma mágica incrível, uma pessoa que desaparece! Ela entra em um closet, e ao abrir, desapareceu. Seria isso magia? Responda dentro de si, afinal, eu já tenho minha resposta.

    Agora vamos novamente, Mister M irá nos revelar a magia: uma pessoa entra no closet, e sai por trás, sem que a câmera veja a pessoa se retirando, e após isso, ao abrir o closet, a pessoa não está mais lá, mas nós já sabemos disso, afinal, nos vimos o que foi feito. Então novamente eu pergunto, isso é magia? A resposta é, provavelmente, não, é um truque.

 

 

    O que Umineko traz é justamente isto, retornando ao que eu falei anteriormente, o cerne da história está na superposição de magia e verdade, um sendo a antítese de outro. Nós humanos somos uma existência triste, o conhecimento é verdade, e a magia é esperança, nós constantemente buscamos conhecimento, e assim enxergamos as engrenagens e portanto, acabamos com nossa magia, e sem magia, não há esperança. Independente disso, mesmo após tanto buscar, nós ainda temos esperança, pois a verdade não é absoluta, a única verdade não existe, mesmo assim, nós continuaremos em frente, arruinando nossos próprios sonhos.

    É uma mensagem triste, afinal, nossa felicidade mora justamente nos sonhos que sonhamos, na magia presente na nossa própria ignorância, e é justamente por isso que Umineko te fala, com todas as letras muitas vezes, que sem amor não é possível ver magia, pois a magia vem justamente do nosso sentimento, e os nossos sentimentos por sua vez são, também, magia. Sim, eu sei que sentimentos tem uma explicação lógica, mas neste ponto você também já deve ter entendido, eu abri mão deste conhecimento, meus sentimentos ainda são mágicos para mim, essa é uma das inocências que eu decidi não abrir mão. E assim como magia é esperança e amor é magia, Umineko me ensinou, uma vez mais, que eu ainda tenho muito a aprender, que eu devo cuidar dos meus sonhos como se fossem rosas, delicadas e bonitas de se olhar, mas seus espinhos demonstram o caminho necessário para seu desabrochar, e também sei que esse aprendizado ainda me fará pisar em muitas rosas do meu jardim, mas está tudo bem, pois hoje eu entendo que 'magia' existe.

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